OS DEGRAUS DO PARAÍSO (Josué Montelo)

13/07/2010 15:07

 1

 

 

 

1

Hill insere Uma sombra na parede não na Saga maranhense, mas em uma “tetralogia da vida

 

contemporânea”, que se completaria com A mulher proibida (1996), A viagem sem regresso

(1993) e Enquanto o tempo não passa (1996).

 

Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192

Concordo com o pressuposto de que a Saga maranhense consista nos

livros que se situam no Maranhão e a tentativa de subdividi-la, excluir títulos

ou acrescer-lhe obras não romanescas mais acrescenta às aleivosias da crítica

que à fruição dos próprios romances, de forma que a Saga aqui é mencionada

nestes termos. No entanto, inter-relacionar seu conteúdo romanesco pode

contribuir para a descoberta de um escritor ainda maior, autor não só de

vários romances mais de uma obra monumental sobre o lugar onde nasceu.

É importante notar que o termo “Saga maranhense” é ainda restrito à

crítica, e as sucessivas edições dos livros não a formataram como tal; mesmo

o autor, quando em vida, não o fez. Neste ponto, comprar um livro de Josué

Montello é uma aventura ao desconhecido: as orelhas, prefácios e

comentários de contracapa resumem-se a missivas elogiosas à figura do

escritor, não contribuindo em nada para a antevisão da obra e seu possível

diálogo com as demais.

Não há nenhum hermetismo na literatura montelliana, mas seus

romances precisam de reedição racional e sistematizada, para que assim, com

novo fôlego, possam alcançar novos leitores; assim como há necessidade de

uma nova leitura dos romances capaz de expor facetas ainda obscuras ou

inexploradas do enorme universo ficcional do escritor.

Pensando nisso, este estudo (pontapé inicial de um projeto mais amplo

e coletivo sobre a Saga) se dedica à análise de um destes romances, “Os

degraus do paraíso” (em sua edição refundida de 1974), na intenção de lançar

uma nova camada de significado à obra em si e à sua relação com a carreira

do autor, a cidade de São Luís e a Saga maranhense.

 

H

A PESCA ÀS BALEIAS2

 

 

São Luís, por volta de 1920, era noite no Desterro. Dir-se-ia que àquela

época a noite era mais escura aos arredores, com a iluminação ainda por

fazer-se elétrica. Um sobrado miúdo, perto da igreja. Na luz da lamparina, o

senhor de batina puída entrega uma carta ao companheiro convalescido,

enquanto lhe parabeniza pelo fato de o AVC recém sofrido ter-lhe afetado

somente o lado direito do corpo, sendo ele canhoto.

Com a língua paralítica e um fio de saliva a teimar no canto da boca, o

homem pensa, olhando o padre:

 

“Seria a fé uma forma de ingenuidade elevada ao plano religioso?”

3

 

 

A este tempo, um garoto de apenas dois anos acompanhava, sentado de

frente para o pai, uma fé que ainda não compreendia, mas que viria a

expressar, mais de 30 anos depois, em forma de livro.

 

 

Os degraus do Paraíso

é o quinto romance de Josué Montello e,

 

certamente, um dos mais importantes, teve função de marco na carreira do

escritor, na forma, estilo e conteúdo.

 

 

2

“O romancista é um pescador de baleias. Ao ferir o cetáceo, o pescador deixa-se levar por

 

ele. A baleia morre mas oferece um trajeto.” Josué Montello, entrevista em 1949.

 

 

3

03. Os degraus do Paraíso, São Paulo, Martins/MEC, 1974 p. 255

 

 

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Na São Luís do entre-guerras (1918 a 1938), alarmada pela gripe

Espanhola, extasiada com a luz elétrica e majoritariamente católica, uma

família comunga da unidade coletiva da morte.

Mariana é uma senhora séria. Mãe de três filhos e separada do marido.

Seu grande desejo é ver o caçula, Teobaldo, nomeado padre e “rezando sua

 

missa nova, provavelmente à Sé”

4. Teobaldo é superprotegido, trancafiado

 

num quarto, na eminência da gripe que pode levar com facilidade o sonho de

Mariana. Enquanto isso, suas duas filhas mais velhas (Morena e Cristina)

sofrem com o desprezo da mãe e ausência do pai. A família conta ainda com

Ernesto (o pai boêmio, expulso de casa pela agora ex-mulher), o Dr. Luna

(amigo e médico de todos) e a preta velha Cipriana, que foi escrava da mãe

de Mariana e é devota de São Benedito.

Uma fatia considerável da população de Saio Luís morria pela gripe,

mas Teobaldo morre tragicamente atropelado por um automóvel e [e esta

tragédia que desencadeia toda a teia dramática do romance. Mariana,

desiludida com tudo pela morte do filho, acaba por encontrar novo sentido

através da religião protestante. Esta conversão e o crescente intolerância de

Mariana a outros cultos em detrimento deste passa a afetar a vida de todos.

Nascido em São Luís em 1917, Josué Montello era filho de um diácono

da Igreja Presbiteriana e parece dever este relato a si e a seu pai (à memória

de quem o livro é dedicado), sendo este, entre seus romances, o que contém

os mais fortes traços “autobiográficos”. O autor só veio a pisar em uma igreja

católica já adolescente, mas teve a liberdade de escolher por qual caminho

iria a Deus.

...

 

Lançado em meados de 1965

5 , Os degraus do Paraíso era notícia sete

 

anos antes da sua publicação, quando o autor falava da história de uma

mulher que se converte ao protestantismo depois de perder “todos os

 

parentes”

6 06. Montello manteve uma relação longa com o livro em seu

 

processo de composição, que apesar de pensado por vasto tempo, foi escrito

em somente dois anos, entre 1962 e 1964.

Ainda em 1958, na Espanha (onde regia a cadeira de professor de

Literatura Brasileira), o escritor recortava figuras de revistas que comporiam

 

por similitude física os personagens que imaginava

7. Lá estavam Mariana,

 

rosto fechado e cortado por rugas; Morena no esplendor de seus 18 anos e o

reverendo Tobias com um longo pescoço maquiavélico coberto por um lenço.

Cenas do livro também figuram no álbum “imaginioso”, como a localização do

sobrado, o velório de Morena, a sala de estar e personagens que não chegaram

 

a aparecer no livro, que, àquela época, se chamava

O caminho, a verdade e a

 

vida.

 

 

4

04. Os degraus, p. 23.

 

 

 

5

Estranhamente, só constam 03 notas em seu diário por ocasião deste livro.

 

 

 

6

Jornal do Comércio, 30/08/1961.

 

 

 

7

Acervo da casa de Cultura Josué Montello.

 

 

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Isto me faz pensar na obsessão em torno da construção desta obra,

recortes semelhantes não podem ser encontrados na feitura de nenhum de

 

seus outros livros, mesmo os mais populares como

Cais da sagração ou

 

 

populosos como

Os tambores de São Luís têm pastas (no acervo da Casa de

 

Cultura Josué Montello) com mapas e demais materiais de pesquisa, mas eles

não focam nas pessoas e em possíveis cenas ou sentimentos e sim na acuidade

das descrições e informações históricas. O romance contava originalmente o

dobro da metragem publicada e teve capítulos reescritos até 11 vezes, na

busca do texto final. Além disso, foi inteiramente “refundido” para a sua

terceira edição, 10 anos depois (que é a edição referendada neste artigo).

Este era um hábito corrente de Montello, que reescreveu todos os seus

 

livros até

Os degraus do Paraíso. A luz da estrela morta, por exemplo, tem

 

 

três versões publicadas; o enredo da novela

Duas Vezes perdida (1966) é

 

 

revisitado uma vez com

Glorinha (1977, ainda como novela) e mais outra no

 

 

romance

Perto da Meia noite (1985).

 

 

Assim disse sobre a revisão de

Janelas fechadas:

 

 

“Só fui fazê-lo em 1982. Entretanto de tal forma lhe alterei a forma primitiva, que

desta apenas restaram seis linhas, duas iniciais e quatro finais (...) embora

 

conservasse a Narrativa da versão original.”

8

 

 

 

Em várias das entrevistas sobre

Os degraus do Paraíso, Montello

 

menciona seu primeiro romance como um “ensaio”; outras matérias

 

consideram

Os degraus do Paraíso seu quarto romance (excluindo

 

naturalmente o primeiro), o que me leva a pensar que a forma que o romance

adquiria era, para o autor, talvez mais importante que sua história.

Ao ser publicado, teve grande atenção da crítica, que foi unânime

quanto às qualidades do novo romance maranhense de Josué Montello. Na

época, havia uma certa polêmica sobre a consolidação do escritor como

 

ensaísta ou romancista e

Os degraus do Paraíso foi um divisor de águas, tendo

 

recebido vários prêmios, entre eles o Fernando Chináglia e consolidado o

autor como um dos grandes romancistas de sua geração.

A característica mais enfocada do romance em jornais foi “Josué

 

inaugura um tema.”

9 ou “Os degraus do Escritor”10

 

 

Em primeiro plano há o ineditismo do enredo (uma conversão religiosa

ao protestantismo), aliado ao fato de ser um tema polêmico, o que o escritor

evitava, dizendo que falava com conhecimento de causa e não pretendia

ridicularizar a crença de ninguém. O que acabou por negar em um ensaio anos

mais tarde, dizendo: “O que eu pretendia era exprimir o lado patético de uma

 

conversão ao protestantismo.”

11.

 

Mesmo que o autor não se envolvesse na querela religiosa em torno do

romance, a própria propaganda oficial do livro alegava ser “Um livro para

católicos e protestantes.” Este não era um tema de todo novo, mas numa

 

 

8

Confissões de um romancista.

 

 

 

9

Lago Burnnet, Jornal do Brasil, 14/04/1964.

 

 

 

10

Virginius da Gama e Melo, Jornal das letras, Rio, fevereiro de 1966.

 

 

 

11

Confissões de um romancista, p. 46.

 

 

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época em que se falava sobre a “unidade” predita por Jesus Cristo, serviu

como uma luva.

Além da religiosidade, a crítica enfoca o fato de que neste romance o

escritor atinge sua tão esperada maturidade. Já havia dado um grande passo

 

com

A décima noite (1959), mas era somente agora que encontrava uma

 

forma que fosse sua, a despeito das influências românticas, às vezes ainda

 

parnasianas e do

nuveau roman francês. Josué Montello nunca se assumiu

 

como pertencente a nenhuma escola literária (apesar de ter integrado um

grupo modernista em São Luís, ainda na juventude), mas adepto dos aspectos

convenientes de todas.

O fato é que a crítica se ateve ou ao lado polêmico e ao ineditismo da

obra, ou à qualidade técnica do escritor. Alguns poucos críticos também

enxergaram um lirismo trágico, como Jorge Amado:

 

 

“Tenho umas duas amigas na Bahia que choraram ao ler seu livro”

12

 

 

Ou o exagerado Valdemar Cavalcante:

 

“Quem consegue ler este romance (...) sem sentir o menor sinal de alteração em seu

metabolismo psicológico, sem experimentar às vezes uma sensação de dor ou repulsa,

uma emoção de entendimento ou solidariedade, há de ter olhos de vidro; e de vidro

os nervos e a sensibilidade. Leitor assim a impressão que tenho é que verá um

caminhão passar por cima de uma criança e ir em frente tranqüilo, infenso à imagem

 

da morte e da desgraça, como se fosse feito de algodão”

13

 

 

Além de Ademar, poucos viram no romance essa tristeza dolorosa,

como Stella Leonardos, que disse que “As páginas (...) doem.”

...

Como alguém que escreve sobre sua terra, estando quase sempre longe

dela, a adoção de imagens pictóricas constrói (como nos quadrinhos) um

imagético do imaginário.

Um bom exemplo da construção romanesca montelliana (e que talvez

 

quebre parte do mito da maranhensidade

14 do escritor) é que, mesmo

 

imortalizando Alcântara em seu romance, Montello só veio a conhecê-la bem

depois de ter saído do Maranhão.

 

“Há 20 anos, quando visitei Alcântara pela primeira vez, tive a idéia de escrever um

 

romance sobre a cidade.”

15

 

 

O escritor já contava mais de 40 anos, tendo morado mais tempo no Rio

de Janeiro que no Maranhão, de onde saiu ainda adolescente, como jornalista,

em um time de futebol.

A distância não invalida a obra imagética e imaginária do escritor,

talvez a reforce, fazendo ver que somente o romantismo da memória e a

 

 

12

Jorge Amado, acervo da casa de Cultura Josué Montello.

 

 

 

13

O jornal, rio, 29/08/1965.

 

 

 

14

Este texto foi escrito antes do termo ser apregoado a políticas espetaculares do governo do

 

estado, favor não confundir.

 

 

15

Entrevista a Heloneida Studart, revista manchete, 22/07/1978.

 

 

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frieza dos documentos são capazes de reproduzir com beleza o que de perto

pode não se captar.

Ou como diria o próprio:

 

“De igual modo, em vez de interrogar o romancista para saber da orientação de seu

 

romance, o melhor é ler-lhe o livro”

16

 

 

Sendo Os degraus do Paraíso um recorte da memória do escritor sobre a

sua infância em um ambiente protestante, a Bíblia e usada como personagem

 

e pedra lapidar do discurso de quase todos os demais personagens,

O livro é

 

composto de várias imagens de Deus e da fé, desde o Deus implacável do

reverendo Tobias, o Deus tolerante de Padre Galvão, o Deus-gente de

Cipriana, o Deus funcional de Mariana ou o Deus social de Ernesto.

Todos têm seu Deus e falam por ele.

 

† UM ROMANCE DA MORTE

 

Bernie: Mas eu me saí bem, não? Ora, vivi uns... quinze mil anos. Eu me sai bem, não?

Vivi bastante tempo.

Morte: Viveu tanto quanto os outros, Bernie. Uma vida inteira.

 

Neil Gaiman, Sandman.

 

“Se uma catástrofe destruísse Alcântara, sua grandeza permaneceria

eterna devido a teu maravilhoso romance.”

Assim, em 1978, num telegrama de Lisboa, Jorge Amado saúda o

 

lançamento de

Noite sobre Alcântara.

 

 

Da mesma forma, James Joyce dizia que poderia se reconstruir a

capital irlandesa, em caso de desastre, através de sua obra.

Assim como Frank Herbert disse que somente em um planeta chamado

Duna é possível encontrar a especiaria, tão cara à navegação espacial.

 

Arakis

17, Dublin, Alcântara ou a Terra do Nunca são todos lugares

 

concretos e construídos através do universo narrativo do escritor e da

cumplicidade de seus leitores, a despeito de sua existência material. A

comparação com um local físico ou institucional existente aumenta o fetiche

em torno da obra, e talvez aja no mecanismo que Umberto Eco chama de

 

“suspensão de descrença”

18; na prática, é o mecanismo que nos permite crer,

 

dentro de uma obra de ficção, que Paul Atreides pode ler pensamentos, Peter

Pan é capaz de voar ou que tenha havido, na virada do século XIX, um enorme

incêndio em Alcântara.

Esta relação real\imaginado é o principal alicerce do Maranhão

montelliano. A intenção do autor em traduzir o estado em seus romances ou

de edificá-lo através da instituição “imortal” da literatura são sintomáticos de

 

 

16

Diário da tarde, 1965. A respeito de perguntas sobre Os degraus do Paraíso.

 

 

 

17

Arakis e Duna são o mesmo planeta, dentro do universo de Frank Herbert.

 

 

 

18

Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da ficção, Companhia das Letras, São Paulo 1999;

 

 

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sua visão de mundo. Há múltiplas leituras desta visão, seja da obra como um

todo ou de um romance em específico.

Como toda reconstrução é uma construção nova, Montello não escapa

de suas próprias armadilhas:

 

 

“Eu aspirava a criação como recriação da realidade.”

19

 

 

O real criado, cuja existência independeu da força do autor (cabendo a

ele somente “editá-lo”) e o imaginário se fundem neste real recriado. O real é

um discurso, só existindo no momento de seu relato ou do consumo deste

relato.

“Temos fora do país, brasileiros que participaram de terrorismos e que

querem voltar. Isso é romanesco. A História não tomará conhecimento desses

 

fatos.”

20

 

 

Para Montello, a literatura registra o que a História perde.

Dentro da historiografia positivista, preponderante naquele momento

(ou mesmo na marxista), a gripe espanhola e as duas guerras são passíveis de

relato, o sofrimento de Mariana e sua família, o microverso do sobrado, não e

é sobre este microverso que Montello se propõe a erguer seu monumento.

 

A recria;ao da realidade de

Os degraus do Paraíso critica a forma como

 

o reverendo Tobias interpreta a Bíblia, menos explícita em suas atitudes de

pastor interessado em ovelhas e mais nos pedaços da Bíblia (real criado) que

escolhe citar (real recriado), num processo muito semelhante à escrita da

história ou do romance:

 

“Mais vale o dia da morte que o dia do nascimento.”

21

 

 

Sobre o qual Morena reflete:

“A morte, sempre a morte. E por quê? Acaso a vida, com as maravilhas

criadas por Deus, não tinha valor? Se tinha, qual o sentido da lembrança da

 

morte, a cada momento?”

22

 

 

Ou mesmo o ateu Dr. Luna:

“— Como é possível viver assim, só pensando na morte e no pecado,

 

com estas ameaças diante dos olhos o dia inteiro?”

23

 

 

A verdade é que, na condução narrativa do romance, como um Deus

vingativo (ou o Deus do reverendo Tobias), Montello pune seus personagens a

cada atitude não altruísta:

Quando Morena, mesmo tensa com a possível reação da mãe, vai a um

baile, acidenta-se e quase perde a perna, acabando por falecer;

Quando Cipriana (convertida em enfermeira) deixa Ernesto, para ir à

festa de São Benedito, ele morre (e ela mesma morre em conseqüência ao

negar, mesmo que momentaneamente, a sua fé em São Benedito);

 

 

19

Confissões de um romancista, p. 46

 

 

 

20

Entrevista para O globo, 15/07/1978.

 

 

 

21

Os degraus, p. 351, citando Eclesiantes, 07/01

 

 

 

22

Os degraus, p. 352.

 

 

 

23

Os degraus p. 274.

 

 

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Quando Ernesto decide, em sua derradeira noite boêmia, comemorar o

aniversário da Chicó, gasta todo o dote da filha à Igreja;

Quando Cristina finalmente embarca para o noviciado na Bahia, seu pai

tem um AVC; e

Quando Teobaldo sai pela primeira vez de casa sem companhia, morre

atropelado.

No entanto, o comportamento ditatorial e fechado de Mariana é

premiado, com seu desejo de reencontrar o filho feito real dentro da

representação de realidade do narrador onipresente e onisciente:

 

“(...) Mariana sentia que ia subindo Os degraus do Paraíso, para encontrar-se lá no

 

alto com seu filho, envolto na eterna luz do Reino do Senhor.”

24

 

 

Montello admite claramente que a crença de Mariana, a despeito de

suas atitudes, lhe levaram a seu filho e a Deus, nos mostrando que a fé que

critica é ao mesmo tempo a que edifica.

 

Como já dito,

Os degraus do Paraíso foi um filho que mereceu atenção

 

esmerada de seu criador, além do álbum de fotos e do cultivo da memória

(tanto da cidade quanto da própria família), o romance surge, posso dizer, de

um enorme desejo de legitimação, de consolidação do escritor ante seus

pares (a academia) e o público (“O romance deve ser ao mesmo tempo

popular e de elite”).

É nesta busca pela maturidade que Montello denuncia afinal a linha

incubadora de seu romance:

 

“E nunca havia ocorrido comigo. Ao longo da redação de meus romances, afinal

 

aconteceu quase ao fim de

Os degraus do Paraíso, a cena da morte de Morena,

 

isolada em seu quarto, a penetrar do outro lado da vida com a sensação de que as

ondas lhe cobrem o corpo na orla da praia, eu as vi com olhos molhados, sentindo que

a emoção me pungia e dilacerava. Algumas vezes parei a cena para enxugar os

 

olhos”

25

 

 

A que ele mesmo elucida:

 

“Eu ainda não havia escrito um romance que me fizesse chorar sobre ele. É certo que

 

me comovera e muito, com dois ou três lances de

A décima Noite. Mas ainda não

 

havia encontrado aquela identificação profunda que nos sufoca em meio da escrita.

Faltava-me ter na boca o gosto de arsênico que Flaubert experimentara ao narrar a

 

morte de madame Bovary.”

26

 

 

O arsênico na boca de Flaubert são as ondas que cobrem mariana,

é o pára-choque nos muros do convento,

é o isolamento no asilo

e a mão que guia escada acima.

 

 

24

Os degraus, p. 390.

 

 

 

25

Confissões de um romancista.

 

 

 

26

Confissões de um romancista.

 

 

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Assim afirmo crer em

Os degraus do Paraíso como um romance sobre a

 

morte, ou ao menos um romance que carrega seu signo. Ela está sempre nas

entrelinhas do livro e muitas vezes em sua superfície, seja a morte física,

morte simbólica ou a ressurreição que, para se realizar, deve ser precedida de

morte.

 

A primeira parte do livro,

Os velhos Lampiões, tem um cheiro ocre de

 

carne sem vida: a gripe, a escuridão, a incerteza, o desamor de Mariana para

com as filhas. A gripe matava indiscriminadamente, as casas eram fechadas,

fazendo com que o calor aberto da cidade volvesse em pequenos fornos cheios

de umidade, doença e desespero. Os cemitérios transbordavam, deixando as

ruas mais propícias aos passeios noturnos de Ana Jansen e da Manguda que aos

promenádios dos cidadãos de bem.

Este início, curtíssimo, nada acrescenta ao enredo central do livro e

serve unicamente para situar o leitor no ambiente funesto e inescapável da

morte.

 

Na segunda parte,

As Grades do Sobrado (que ocupa mais de 90% da

 

narrativa), Montello situa sua claustrofobia numa esquina em São Luís do

Maranhão, entre as ruas do Sol e da Cruz (sobrado que hoje é ocupado pelo

IPAM). Já nesta locação aparece o selo da morte, visto que dos dois ícones,

um deles, o sol (ou estrela) simboliza nascimento; e o outro, a cruz, a morte,

como em inscrições tumulares ou epígrafes.

A locação de Montello simboliza um caminho vital que, a despeito do

desejo de transmigração de sua protagonista (ao menos de início), inclui

somente vida e morte. Vida terrena e morte cega. A própria esquina em si é

uma enorme cruz se estendendo pela cidade, e somente Morena usa o

patíbulo dos fundos.

Além do aspecto físico, as relações dos personagens se sustentam pela

morte. Teobaldo morto é a união da família. A imagem do menino com o qual

não se consegue competir (do ponto de vista das irmãs), ou que morreu em

sua inocência quando tudo que queria era servir a Deus (para Mariana), ou da

morte que gera oportunidade de reintegração ao lar (para Ernesto), ou, ainda,

arregimentação de uma nova alma (para o reverendo Tobias).

À medida que a narrativa transcorre, o ato de morrer se torna cada vez

mais sublime, menos físico, do brutal e inesperado atropelamento de

Teobaldo à catarse de Mariana.

Todos os personagens do romance, em algum momento, alimentam

desejos de morte (alguns concretizados):

Ernesto, ao ser recusado como soldado na guerra vê-se inútil até para

morrer. Ao ficar inválido, pega a arma para o derradeiro tiro;

Cristina se auto-flagela para não ir à Igreja Protestante;

Cipriana pensa ser melhor morrer a passar pelo que passa;

Dr. Luna é um operário da morte;

Reverendo Tobias, Biá e Abigail atuam como agentes mortuários;

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Este ambiente de morte se reforça quando nos debruçamos sobre os

nomes dados às personagens:

Mariana (como Maria, mãe de Deus ou do menino Teobaldo) é de uma

devoção cega, destinada a seguir o filho até o fim;

Teobaldo é o próprio Deus: onipresente, a olhar por um velho retrato a

imensidão do sobrado por sobre o piano nunca tocado.

Cristina (originalmente batizada pelo autor de Nely) segue o caminho

do Cristo (que não é o mesmo que Mariana) tornando-se freira.

Morena (como Mouro, ou seja, Árabe, anti-cristão) deseja uma vida

mundana e acaba por suicidar-se.

São, pois, estes quatro o sustentáculo da cruz montelliana.

...

Mariana, antes católica fervorosa, mantém uma relação edipiana com o

filho pequeno, adota o protestantismo como sobrevida, cultivando o único

objetivo de reencontrar Teobaldo, o que obviamente só conseguirá morrendo.

Mariana é um perene desejo de morte. A vida só lhe convém como os

necessários pequenos degraus da escada que a levará a Teobaldo. Antes disso,

passa por sucessivas outras mortes que são a separação do marido, a perda

das duas filhas (uma para o caixão e outra para o convento. Ambas

devidamente deserdadas). Como que se matando aos poucos, vai-se

fragmentando para suportar cada vez mais só, mais áspera e esperançosa a

sua dor de vida.

Assim se passam mais de 20 anos.

A morte do amado marido ainda motiva a Sinhazinha Dourado a tocar

sua valsa ao piano, cada vez mais funesta.

Morre o Dr. Luna, morre o padre Galvão, morre a Cipriana e a mulher

do reverendo Tobias. Mesmo a cidade experimenta um tipo de morte na

terceira parte do romance “Os degraus do Paraíso” (também com poucas

páginas):

 

“E só quando o luar voltou, debruçando-se sôbre os sobradões da Praia Grande, é que

se pôde sentir que São Luís, sobretudo ali junto do mar, havia sido restituída a si

 

mesma, com a penumbra propícia ao canto de amor dos seresteiros.”

27

 

 

A cidade moderna, com seus lampiões de gás em desuso, sua vida de

práticas em extinção, só encontrava sua verdadeira natureza na escuridão. O

novo mundo das luzes significa a morte do lugar com o qual convivemos e de

que somos parte.

E é esta cidade renascida, já sem as luzes vermelhas dos vendedores de

peixe frito e com medo dos submarinos alemães e do cometa Harley, que

acaba por encontrar Mariana, ainda no sobrado, ainda viva, ainda por querer

morrer:

 

 

27

26. Os degraus, p. 378.

 

 

Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192

 

“Deus lhe poupara a vida, a despeito de suas suplicas constantes para morrer, a fim

de que ela, desfigurada pelo tempo, o rosto cortado de rugas, mãos trêmulas,

testemunhasse a volta de Cristo, depois do escurecimento do sol e da lua e da queda

 

das estrelas. E esse dia não tardava.”

28

 

 

 

Este messias, que viria “trazido por uma nuvem”

29 chegou numa manhã

 

em um pequeno barco; vestia um hábito e seu nome era Cristina.

Como Cristo, a já freira filha de Mariana surge para trazer a verdade:

A verdade sobre a morte. A morte de Teobaldo.

A negação do catolicismo por Mariana sustentava-se nas escrituras

bíblicas, que negavam a Igreja Apostólica Romana como detentora da verdade

e a acusava de pecaminosa. Mariana, ao querer entregar seu filho à Igreja

Católica, cai em pecado.

A morte de Teobaldo passa, portanto, a ser parte do plano divino para

corrigir um erro da mãe, do qual o filho seria vítima.

Antes a morte ao inferno.

Cristina, ao ver os pertences da irmã, reconhece esta mesma

providência em sua morte:

 

“Na realidade, Morena não se matara: Deus a chamara à sua santa glória, antes que a

mãe a distanciasse da verdade de Cristo. Se a irmã não morresse, acabaria cedendo. E

estaria perdida” (Os degraus, P. 388)

 

Se Teobaldo morre pelo Deus do reverendo Tobias, Morena morre pelo

Deus do padre Galvão.

E é esta verdade que Cristina transmite a Mariana, na derradeira

tentativa de reconversão.

É esta verdade, como o discurso do escritor, a verdade de quem o lê.

Esta verdade acaba num envelope fechado, como tantos outros

abarrotando o quarto mofado de Mariana.

Verdade que Teobaldo em seu retrato olhava Mariana ao fremir as

teclas do piano, na contração final.

Que Cristina pegou o barco que a havia trazido, naquele mesmo dia, de

volta ao caminho de sua verdade.

 

 

Os degraus do Paraíso

surge de um desejo de morte.

 

Converter-se em qualquer coisa é morrer o que se era.

Morrer é como voltar pra casa.

Não há escada nOs degraus do Paraíso, a vertigem helicoidal anunciada

por Montello é nada mais que a morte, único passaporte possível para a

felicidade eterna.

 

 

28

27. Os degraus, p. 381.

 

 

 

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28. Os degraus, p. 381.

 

 

Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192

 

BIBLIOGRAFIA

 

Acervo da Casa de Cultura Josué Montello (jornais, cartas, anotações);

 

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Um romance da Cisão: Os tambores de São Luís, sem

 

editora, Rio de Janeiro, 1977;

 

Eco, Umberto:

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Letras, São Paulo, 1999;

 

Herbert, Frank;

Duna, Nova fronteira, Rio de Janeiro, 1965;

 

 

Hill, Telenia;

Josué Montello: Um trajeto luminoso; Jornal Pequeno,

 

São Luís, 20 de dezembro de 2007;

 

Montello, Josué:

Os degraus do Paraíso, Martins/Mec, São Paulo, 1974;

 

 

____________ :

Os Tambores de São Luís, José Olímpio editora/MEC,

 

Rio de Janeiro 1975;

 

____________ :

Noite sobre Alcântara, Nova fronteira, Rio de Janeiro,

 

1984;

 

____________ :

Uma sombra na Parede, Nova Fronteira, Rio de

 

Janeiro, 1995;

 

____________ :

Cais da Sagração, Nova Fronteira, Rio de Janeiro,

 

1971;

 

____________ :

O labirinto de Espelhos, Nova Fronteira, Rio de

 

Janeiro, sem data;

 

____________ :

A luz da estrela morta, Nova Fronteira, Rio de Janeiro,

 

1982;

 

____________ :

Confissões de um romancista, in Romances e novelas

 

escolhidas, vol 01, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1996;

 

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Diário da Tarde, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1987;

 

 

Nolêto, Nácia Lopes,

Marantello (monografia de conclusão de curso),

 

São Luís, 2002;

 

Silva, Clores Olanda,

O mundo do imaginário como forma de

 

interpretação da história na obra “Os tambores de São Luís”, de

 

Josué Montello,

monografia de conclusão de curso, São Luís, 1996

 

 

Xavier, Valêncio:

O mez da grippe, Companhia das letras, São Paulo,

 

1998.

 

Resumo

 

 

Análise do quinto romance do escritor maranhense Josué Montello,

Os

 

 

degraus do Paraíso

.

 

Através de análise literária (o próprio livro), bibliográfica (textos de ou

sobre Montello) e documental (acervo da casa de cultura Josué Montello:

jornais, entrevistas e recortes em geral), procurei dar nova luz ao leque

Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192

interpretativo do romance, em sua teia de significados quanto ao escritor, a

cidade e sua inter-relação com o restante da Saga Maranhense.

 

 

Palavras-chave:

Josué Montello, Maranhão, São Luís, morte.

 

 

Abstract

 

 

This article Is an analysis of Josué Montello’s fifth novel,

Os degraus do

 

 

Paraíso

. (The Paradise Steps).

 

Trough literary analysis (the novel itself), bibliographical (books and

articles about Montello) and documents (papers, interviews and general notes

stored at Casa de cultura Josué Montello), I went on trying to add new light to

the novel’s interpretative fold, on it’s possible meanings towards the writer

himself, the city and it’s relation to the rest of the Saga Maranhense.

 

Resumen

 

Este artículo es un análisis de la quinta novela de Josué Montello, Os

degraus do Paraíso. (Los pasos del Paraíso).

A través de análisis literario (la novela en sí), Bibliográfica (libros y

artículos acerca de Montello) y documentos (entrevistas y notas generales

almacenados en la Casa de cultura Josué Montello), He tratado de añadir

nuevos significados a la novela, sobre los posible significados hacia el propio

escritor, la ciudad y su relación con el resto de la Saga Maranhense.

 

Palabras clave:

 

 

 

Josué Montello, Maranhão, São Luís, muerte. 

O Caminho, a Verdade e a Vida

Projeções sobre Os degraus do Paraíso

 

Bruno Azevêdo

 

INTRODUÇÃO: JOSUÉ MONTELLO E A SAGA MARANHENSE

 

São Luís é uma ilha que se faz questão. Fisicamente ligada ao

continente por um canal não à toa conhecido como Estreito (dos Mosquitos), a

cidade teve ao longo de sua história poucos vizinhos; durante o período de

dominação portuguesa, seus olhos estavam mais voltados ao mar que ao

continente e, mesmo hoje, leva-se quase uma hora para chegarmos à cidade

mais próxima. Talvez por este isolamento tenha desenvolvido particularidades

que há anos vêm fascinando e expulsando os ludovicenses. Um destes

conseguiu conservar os dois aspectos na medida em que nela ficou pouco, mas

dela falou tanto que acabou por erguer uma outra cidade, construção

correntemente conhecida como a “Saga maranhense” de Josué Montello.

O termo foi inicialmente usado pelo crítico Franklin de Oliveira como

referência aos romances montellianos que se passassem no Maranhão, sendo

aceito largamente, mas nunca estudado a fundo, ficando a idéia geral de que

Montello, apesar de situar alguns livros em outros lugares como o Rio de

Janeiro, tinha no Maranhão o maior enfoque de sua obra.

O fato de algumas histórias não se situarem no estado denuncia a

intenção de uma inter-relação entre as que têm o Maranhão como cenário.

Assim, a Saga maranhense pode e deve conter textos que não dizem respeito

a um livro específico e sim a todos eles, sendo cada romance como um tijolo

com o qual o autor edifica a sua versão do lugar. Esta inter-relação pode estar

para além da intencionalidade direta do autor e começa pela tentativa de

definição do que seria a própria Saga.

A escritora Telenia Hill diz que:

 

“Depois de Janelas fechadas (1941), Montello retorna aos motivos maranhenses, com

Labirinto de espelhos (1952), seguindo-lhes A décima noite (1959), Degraus do Paraíso

(1965), Cais da Sagração (l971) e Os tambores de São Luís (1975). Constrói-se,

portanto, a saga maranhense que se completaria com o romance que acaba de ser

focalizado, se não fosse a retomada com A coroa de areia (1979), O Largo do Desterro

(1981), e Perto da meia-noite (1985).” (HILL, 2007).

 

É fato que Montello compôs seus romances de maior “relevo” nos anos

1970, mas não deixou de escrever sobre o Maranhão em outras épocas; mesmo

após “Perto da meia-noite” (onde a autora situa o final da saga) há livros

 

ludovicenses como “Uma sobra na parede”, de 1995.