OS DEGRAUS DO PARAÍSO (Josué Montelo)
almacenados en la Casa de cultura Josué Montello), He tratado de añadir nuevos significados a la novela, sobre los posible significados hacia el propio escritor, la ciudad y su relación con el resto de la Saga Maranhense. Palabras clave: 1
1
Hill insere Uma sombra na parede não na Saga maranhense, mas em uma “tetralogia da vida
contemporânea”, que se completaria com A mulher proibida (1996), A viagem sem regresso
(1993) e Enquanto o tempo não passa (1996).
Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192
Concordo com o pressuposto de que a Saga maranhense consista nos
livros que se situam no Maranhão e a tentativa de subdividi-la, excluir títulos
ou acrescer-lhe obras não romanescas mais acrescenta às aleivosias da crítica
que à fruição dos próprios romances, de forma que a Saga aqui é mencionada
nestes termos. No entanto, inter-relacionar seu conteúdo romanesco pode
contribuir para a descoberta de um escritor ainda maior, autor não só de
vários romances mais de uma obra monumental sobre o lugar onde nasceu.
É importante notar que o termo “Saga maranhense” é ainda restrito à
crítica, e as sucessivas edições dos livros não a formataram como tal; mesmo
o autor, quando em vida, não o fez. Neste ponto, comprar um livro de Josué
Montello é uma aventura ao desconhecido: as orelhas, prefácios e
comentários de contracapa resumem-se a missivas elogiosas à figura do
escritor, não contribuindo em nada para a antevisão da obra e seu possível
diálogo com as demais.
Não há nenhum hermetismo na literatura montelliana, mas seus
romances precisam de reedição racional e sistematizada, para que assim, com
novo fôlego, possam alcançar novos leitores; assim como há necessidade de
uma nova leitura dos romances capaz de expor facetas ainda obscuras ou
inexploradas do enorme universo ficcional do escritor.
Pensando nisso, este estudo (pontapé inicial de um projeto mais amplo
e coletivo sobre a Saga) se dedica à análise de um destes romances, “Os
degraus do paraíso” (em sua edição refundida de 1974), na intenção de lançar
uma nova camada de significado à obra em si e à sua relação com a carreira
do autor, a cidade de São Luís e a Saga maranhense.
H
A PESCA ÀS BALEIAS2
São Luís, por volta de 1920, era noite no Desterro. Dir-se-ia que àquela
época a noite era mais escura aos arredores, com a iluminação ainda por
fazer-se elétrica. Um sobrado miúdo, perto da igreja. Na luz da lamparina, o
senhor de batina puída entrega uma carta ao companheiro convalescido,
enquanto lhe parabeniza pelo fato de o AVC recém sofrido ter-lhe afetado
somente o lado direito do corpo, sendo ele canhoto.
Com a língua paralítica e um fio de saliva a teimar no canto da boca, o
homem pensa, olhando o padre:
“Seria a fé uma forma de ingenuidade elevada ao plano religioso?”
3
A este tempo, um garoto de apenas dois anos acompanhava, sentado de
frente para o pai, uma fé que ainda não compreendia, mas que viria a
expressar, mais de 30 anos depois, em forma de livro.
Os degraus do Paraíso
é o quinto romance de Josué Montello e,
certamente, um dos mais importantes, teve função de marco na carreira do
escritor, na forma, estilo e conteúdo.
2
“O romancista é um pescador de baleias. Ao ferir o cetáceo, o pescador deixa-se levar por
ele. A baleia morre mas oferece um trajeto.” Josué Montello, entrevista em 1949.
3
03. Os degraus do Paraíso, São Paulo, Martins/MEC, 1974 p. 255
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Na São Luís do entre-guerras (1918 a 1938), alarmada pela gripe
Espanhola, extasiada com a luz elétrica e majoritariamente católica, uma
família comunga da unidade coletiva da morte.
Mariana é uma senhora séria. Mãe de três filhos e separada do marido.
Seu grande desejo é ver o caçula, Teobaldo, nomeado padre e “rezando sua
missa nova, provavelmente à Sé”
4. Teobaldo é superprotegido, trancafiado
num quarto, na eminência da gripe que pode levar com facilidade o sonho de
Mariana. Enquanto isso, suas duas filhas mais velhas (Morena e Cristina)
sofrem com o desprezo da mãe e ausência do pai. A família conta ainda com
Ernesto (o pai boêmio, expulso de casa pela agora ex-mulher), o Dr. Luna
(amigo e médico de todos) e a preta velha Cipriana, que foi escrava da mãe
de Mariana e é devota de São Benedito.
Uma fatia considerável da população de Saio Luís morria pela gripe,
mas Teobaldo morre tragicamente atropelado por um automóvel e [e esta
tragédia que desencadeia toda a teia dramática do romance. Mariana,
desiludida com tudo pela morte do filho, acaba por encontrar novo sentido
através da religião protestante. Esta conversão e o crescente intolerância de
Mariana a outros cultos em detrimento deste passa a afetar a vida de todos.
Nascido em São Luís em 1917, Josué Montello era filho de um diácono
da Igreja Presbiteriana e parece dever este relato a si e a seu pai (à memória
de quem o livro é dedicado), sendo este, entre seus romances, o que contém
os mais fortes traços “autobiográficos”. O autor só veio a pisar em uma igreja
católica já adolescente, mas teve a liberdade de escolher por qual caminho
iria a Deus.
...
Lançado em meados de 1965
5 , Os degraus do Paraíso era notícia sete
anos antes da sua publicação, quando o autor falava da história de uma
mulher que se converte ao protestantismo depois de perder “todos os
parentes”
6 06. Montello manteve uma relação longa com o livro em seu
processo de composição, que apesar de pensado por vasto tempo, foi escrito
em somente dois anos, entre 1962 e 1964.
Ainda em 1958, na Espanha (onde regia a cadeira de professor de
Literatura Brasileira), o escritor recortava figuras de revistas que comporiam
por similitude física os personagens que imaginava
7. Lá estavam Mariana,
rosto fechado e cortado por rugas; Morena no esplendor de seus 18 anos e o
reverendo Tobias com um longo pescoço maquiavélico coberto por um lenço.
Cenas do livro também figuram no álbum “imaginioso”, como a localização do
sobrado, o velório de Morena, a sala de estar e personagens que não chegaram
a aparecer no livro, que, àquela época, se chamava
O caminho, a verdade e a
vida.
4
04. Os degraus, p. 23.
5
Estranhamente, só constam 03 notas em seu diário por ocasião deste livro.
6
Jornal do Comércio, 30/08/1961.
7
Acervo da casa de Cultura Josué Montello.
Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192
Isto me faz pensar na obsessão em torno da construção desta obra,
recortes semelhantes não podem ser encontrados na feitura de nenhum de
seus outros livros, mesmo os mais populares como
Cais da sagração ou
populosos como
Os tambores de São Luís têm pastas (no acervo da Casa de
Cultura Josué Montello) com mapas e demais materiais de pesquisa, mas eles
não focam nas pessoas e em possíveis cenas ou sentimentos e sim na acuidade
das descrições e informações históricas. O romance contava originalmente o
dobro da metragem publicada e teve capítulos reescritos até 11 vezes, na
busca do texto final. Além disso, foi inteiramente “refundido” para a sua
terceira edição, 10 anos depois (que é a edição referendada neste artigo).
Este era um hábito corrente de Montello, que reescreveu todos os seus
livros até
Os degraus do Paraíso. A luz da estrela morta, por exemplo, tem
três versões publicadas; o enredo da novela
Duas Vezes perdida (1966) é
revisitado uma vez com
Glorinha (1977, ainda como novela) e mais outra no
romance
Perto da Meia noite (1985).
Assim disse sobre a revisão de
Janelas fechadas:
“Só fui fazê-lo em 1982. Entretanto de tal forma lhe alterei a forma primitiva, que
desta apenas restaram seis linhas, duas iniciais e quatro finais (...) embora
conservasse a Narrativa da versão original.”
8
Em várias das entrevistas sobre
Os degraus do Paraíso, Montello
menciona seu primeiro romance como um “ensaio”; outras matérias
consideram
Os degraus do Paraíso seu quarto romance (excluindo
naturalmente o primeiro), o que me leva a pensar que a forma que o romance
adquiria era, para o autor, talvez mais importante que sua história.
Ao ser publicado, teve grande atenção da crítica, que foi unânime
quanto às qualidades do novo romance maranhense de Josué Montello. Na
época, havia uma certa polêmica sobre a consolidação do escritor como
ensaísta ou romancista e
Os degraus do Paraíso foi um divisor de águas, tendo
recebido vários prêmios, entre eles o Fernando Chináglia e consolidado o
autor como um dos grandes romancistas de sua geração.
A característica mais enfocada do romance em jornais foi “Josué
inaugura um tema.”
9 ou “Os degraus do Escritor”10
Em primeiro plano há o ineditismo do enredo (uma conversão religiosa
ao protestantismo), aliado ao fato de ser um tema polêmico, o que o escritor
evitava, dizendo que falava com conhecimento de causa e não pretendia
ridicularizar a crença de ninguém. O que acabou por negar em um ensaio anos
mais tarde, dizendo: “O que eu pretendia era exprimir o lado patético de uma
conversão ao protestantismo.”
11.
Mesmo que o autor não se envolvesse na querela religiosa em torno do
romance, a própria propaganda oficial do livro alegava ser “Um livro para
católicos e protestantes.” Este não era um tema de todo novo, mas numa
8
Confissões de um romancista.
9
Lago Burnnet, Jornal do Brasil, 14/04/1964.
10
Virginius da Gama e Melo, Jornal das letras, Rio, fevereiro de 1966.
11
Confissões de um romancista, p. 46.
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época em que se falava sobre a “unidade” predita por Jesus Cristo, serviu
como uma luva.
Além da religiosidade, a crítica enfoca o fato de que neste romance o
escritor atinge sua tão esperada maturidade. Já havia dado um grande passo
com
A décima noite (1959), mas era somente agora que encontrava uma
forma que fosse sua, a despeito das influências românticas, às vezes ainda
parnasianas e do
nuveau roman francês. Josué Montello nunca se assumiu
como pertencente a nenhuma escola literária (apesar de ter integrado um
grupo modernista em São Luís, ainda na juventude), mas adepto dos aspectos
convenientes de todas.
O fato é que a crítica se ateve ou ao lado polêmico e ao ineditismo da
obra, ou à qualidade técnica do escritor. Alguns poucos críticos também
enxergaram um lirismo trágico, como Jorge Amado:
“Tenho umas duas amigas na Bahia que choraram ao ler seu livro”
12
Ou o exagerado Valdemar Cavalcante:
“Quem consegue ler este romance (...) sem sentir o menor sinal de alteração em seu
metabolismo psicológico, sem experimentar às vezes uma sensação de dor ou repulsa,
uma emoção de entendimento ou solidariedade, há de ter olhos de vidro; e de vidro
os nervos e a sensibilidade. Leitor assim a impressão que tenho é que verá um
caminhão passar por cima de uma criança e ir em frente tranqüilo, infenso à imagem
da morte e da desgraça, como se fosse feito de algodão”
13
Além de Ademar, poucos viram no romance essa tristeza dolorosa,
como Stella Leonardos, que disse que “As páginas (...) doem.”
...
Como alguém que escreve sobre sua terra, estando quase sempre longe
dela, a adoção de imagens pictóricas constrói (como nos quadrinhos) um
imagético do imaginário.
Um bom exemplo da construção romanesca montelliana (e que talvez
quebre parte do mito da maranhensidade
14 do escritor) é que, mesmo
imortalizando Alcântara em seu romance, Montello só veio a conhecê-la bem
depois de ter saído do Maranhão.
“Há 20 anos, quando visitei Alcântara pela primeira vez, tive a idéia de escrever um
romance sobre a cidade.”
15
O escritor já contava mais de 40 anos, tendo morado mais tempo no Rio
de Janeiro que no Maranhão, de onde saiu ainda adolescente, como jornalista,
em um time de futebol.
A distância não invalida a obra imagética e imaginária do escritor,
talvez a reforce, fazendo ver que somente o romantismo da memória e a
12
Jorge Amado, acervo da casa de Cultura Josué Montello.
13
O jornal, rio, 29/08/1965.
14
Este texto foi escrito antes do termo ser apregoado a políticas espetaculares do governo do
estado, favor não confundir.
15
Entrevista a Heloneida Studart, revista manchete, 22/07/1978.
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frieza dos documentos são capazes de reproduzir com beleza o que de perto
pode não se captar.
Ou como diria o próprio:
“De igual modo, em vez de interrogar o romancista para saber da orientação de seu
romance, o melhor é ler-lhe o livro”
16
Sendo Os degraus do Paraíso um recorte da memória do escritor sobre a
sua infância em um ambiente protestante, a Bíblia e usada como personagem
e pedra lapidar do discurso de quase todos os demais personagens,
O livro é
composto de várias imagens de Deus e da fé, desde o Deus implacável do
reverendo Tobias, o Deus tolerante de Padre Galvão, o Deus-gente de
Cipriana, o Deus funcional de Mariana ou o Deus social de Ernesto.
Todos têm seu Deus e falam por ele.
† UM ROMANCE DA MORTE
Bernie: Mas eu me saí bem, não? Ora, vivi uns... quinze mil anos. Eu me sai bem, não?
Vivi bastante tempo.
Morte: Viveu tanto quanto os outros, Bernie. Uma vida inteira.
Neil Gaiman, Sandman.
“Se uma catástrofe destruísse Alcântara, sua grandeza permaneceria
eterna devido a teu maravilhoso romance.”
Assim, em 1978, num telegrama de Lisboa, Jorge Amado saúda o
lançamento de
Noite sobre Alcântara.
Da mesma forma, James Joyce dizia que poderia se reconstruir a
capital irlandesa, em caso de desastre, através de sua obra.
Assim como Frank Herbert disse que somente em um planeta chamado
Duna é possível encontrar a especiaria, tão cara à navegação espacial.
Arakis
17, Dublin, Alcântara ou a Terra do Nunca são todos lugares
concretos e construídos através do universo narrativo do escritor e da
cumplicidade de seus leitores, a despeito de sua existência material. A
comparação com um local físico ou institucional existente aumenta o fetiche
em torno da obra, e talvez aja no mecanismo que Umberto Eco chama de
“suspensão de descrença”
18; na prática, é o mecanismo que nos permite crer,
dentro de uma obra de ficção, que Paul Atreides pode ler pensamentos, Peter
Pan é capaz de voar ou que tenha havido, na virada do século XIX, um enorme
incêndio em Alcântara.
Esta relação real\imaginado é o principal alicerce do Maranhão
montelliano. A intenção do autor em traduzir o estado em seus romances ou
de edificá-lo através da instituição “imortal” da literatura são sintomáticos de
16
Diário da tarde, 1965. A respeito de perguntas sobre Os degraus do Paraíso.
17
Arakis e Duna são o mesmo planeta, dentro do universo de Frank Herbert.
18
Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da ficção, Companhia das Letras, São Paulo 1999;
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sua visão de mundo. Há múltiplas leituras desta visão, seja da obra como um
todo ou de um romance em específico.
Como toda reconstrução é uma construção nova, Montello não escapa
de suas próprias armadilhas:
“Eu aspirava a criação como recriação da realidade.”
19
O real criado, cuja existência independeu da força do autor (cabendo a
ele somente “editá-lo”) e o imaginário se fundem neste real recriado. O real é
um discurso, só existindo no momento de seu relato ou do consumo deste
relato.
“Temos fora do país, brasileiros que participaram de terrorismos e que
querem voltar. Isso é romanesco. A História não tomará conhecimento desses
fatos.”
20
Para Montello, a literatura registra o que a História perde.
Dentro da historiografia positivista, preponderante naquele momento
(ou mesmo na marxista), a gripe espanhola e as duas guerras são passíveis de
relato, o sofrimento de Mariana e sua família, o microverso do sobrado, não e
é sobre este microverso que Montello se propõe a erguer seu monumento.
A recria;ao da realidade de
Os degraus do Paraíso critica a forma como
o reverendo Tobias interpreta a Bíblia, menos explícita em suas atitudes de
pastor interessado em ovelhas e mais nos pedaços da Bíblia (real criado) que
escolhe citar (real recriado), num processo muito semelhante à escrita da
história ou do romance:
“Mais vale o dia da morte que o dia do nascimento.”
21
Sobre o qual Morena reflete:
“A morte, sempre a morte. E por quê? Acaso a vida, com as maravilhas
criadas por Deus, não tinha valor? Se tinha, qual o sentido da lembrança da
morte, a cada momento?”
22
Ou mesmo o ateu Dr. Luna:
“— Como é possível viver assim, só pensando na morte e no pecado,
com estas ameaças diante dos olhos o dia inteiro?”
23
A verdade é que, na condução narrativa do romance, como um Deus
vingativo (ou o Deus do reverendo Tobias), Montello pune seus personagens a
cada atitude não altruísta:
Quando Morena, mesmo tensa com a possível reação da mãe, vai a um
baile, acidenta-se e quase perde a perna, acabando por falecer;
Quando Cipriana (convertida em enfermeira) deixa Ernesto, para ir à
festa de São Benedito, ele morre (e ela mesma morre em conseqüência ao
negar, mesmo que momentaneamente, a sua fé em São Benedito);
19
Confissões de um romancista, p. 46
20
Entrevista para O globo, 15/07/1978.
21
Os degraus, p. 351, citando Eclesiantes, 07/01
22
Os degraus, p. 352.
23
Os degraus p. 274.
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Quando Ernesto decide, em sua derradeira noite boêmia, comemorar o
aniversário da Chicó, gasta todo o dote da filha à Igreja;
Quando Cristina finalmente embarca para o noviciado na Bahia, seu pai
tem um AVC; e
Quando Teobaldo sai pela primeira vez de casa sem companhia, morre
atropelado.
No entanto, o comportamento ditatorial e fechado de Mariana é
premiado, com seu desejo de reencontrar o filho feito real dentro da
representação de realidade do narrador onipresente e onisciente:
“(...) Mariana sentia que ia subindo Os degraus do Paraíso, para encontrar-se lá no
alto com seu filho, envolto na eterna luz do Reino do Senhor.”
24
Montello admite claramente que a crença de Mariana, a despeito de
suas atitudes, lhe levaram a seu filho e a Deus, nos mostrando que a fé que
critica é ao mesmo tempo a que edifica.
Como já dito,
Os degraus do Paraíso foi um filho que mereceu atenção
esmerada de seu criador, além do álbum de fotos e do cultivo da memória
(tanto da cidade quanto da própria família), o romance surge, posso dizer, de
um enorme desejo de legitimação, de consolidação do escritor ante seus
pares (a academia) e o público (“O romance deve ser ao mesmo tempo
popular e de elite”).
É nesta busca pela maturidade que Montello denuncia afinal a linha
incubadora de seu romance:
“E nunca havia ocorrido comigo. Ao longo da redação de meus romances, afinal
aconteceu quase ao fim de
Os degraus do Paraíso, a cena da morte de Morena,
isolada em seu quarto, a penetrar do outro lado da vida com a sensação de que as
ondas lhe cobrem o corpo na orla da praia, eu as vi com olhos molhados, sentindo que
a emoção me pungia e dilacerava. Algumas vezes parei a cena para enxugar os
olhos”
25
A que ele mesmo elucida:
“Eu ainda não havia escrito um romance que me fizesse chorar sobre ele. É certo que
me comovera e muito, com dois ou três lances de
A décima Noite. Mas ainda não
havia encontrado aquela identificação profunda que nos sufoca em meio da escrita.
Faltava-me ter na boca o gosto de arsênico que Flaubert experimentara ao narrar a
morte de madame Bovary.”
26
O arsênico na boca de Flaubert são as ondas que cobrem mariana,
é o pára-choque nos muros do convento,
é o isolamento no asilo
e a mão que guia escada acima.
24
Os degraus, p. 390.
25
Confissões de um romancista.
26
Confissões de um romancista.
Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192
Assim afirmo crer em
Os degraus do Paraíso como um romance sobre a
morte, ou ao menos um romance que carrega seu signo. Ela está sempre nas
entrelinhas do livro e muitas vezes em sua superfície, seja a morte física,
morte simbólica ou a ressurreição que, para se realizar, deve ser precedida de
morte.
A primeira parte do livro,
Os velhos Lampiões, tem um cheiro ocre de
carne sem vida: a gripe, a escuridão, a incerteza, o desamor de Mariana para
com as filhas. A gripe matava indiscriminadamente, as casas eram fechadas,
fazendo com que o calor aberto da cidade volvesse em pequenos fornos cheios
de umidade, doença e desespero. Os cemitérios transbordavam, deixando as
ruas mais propícias aos passeios noturnos de Ana Jansen e da Manguda que aos
promenádios dos cidadãos de bem.
Este início, curtíssimo, nada acrescenta ao enredo central do livro e
serve unicamente para situar o leitor no ambiente funesto e inescapável da
morte.
Na segunda parte,
As Grades do Sobrado (que ocupa mais de 90% da
narrativa), Montello situa sua claustrofobia numa esquina em São Luís do
Maranhão, entre as ruas do Sol e da Cruz (sobrado que hoje é ocupado pelo
IPAM). Já nesta locação aparece o selo da morte, visto que dos dois ícones,
um deles, o sol (ou estrela) simboliza nascimento; e o outro, a cruz, a morte,
como em inscrições tumulares ou epígrafes.
A locação de Montello simboliza um caminho vital que, a despeito do
desejo de transmigração de sua protagonista (ao menos de início), inclui
somente vida e morte. Vida terrena e morte cega. A própria esquina em si é
uma enorme cruz se estendendo pela cidade, e somente Morena usa o
patíbulo dos fundos.
Além do aspecto físico, as relações dos personagens se sustentam pela
morte. Teobaldo morto é a união da família. A imagem do menino com o qual
não se consegue competir (do ponto de vista das irmãs), ou que morreu em
sua inocência quando tudo que queria era servir a Deus (para Mariana), ou da
morte que gera oportunidade de reintegração ao lar (para Ernesto), ou, ainda,
arregimentação de uma nova alma (para o reverendo Tobias).
À medida que a narrativa transcorre, o ato de morrer se torna cada vez
mais sublime, menos físico, do brutal e inesperado atropelamento de
Teobaldo à catarse de Mariana.
Todos os personagens do romance, em algum momento, alimentam
desejos de morte (alguns concretizados):
Ernesto, ao ser recusado como soldado na guerra vê-se inútil até para
morrer. Ao ficar inválido, pega a arma para o derradeiro tiro;
Cristina se auto-flagela para não ir à Igreja Protestante;
Cipriana pensa ser melhor morrer a passar pelo que passa;
Dr. Luna é um operário da morte;
Reverendo Tobias, Biá e Abigail atuam como agentes mortuários;
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Este ambiente de morte se reforça quando nos debruçamos sobre os
nomes dados às personagens:
Mariana (como Maria, mãe de Deus ou do menino Teobaldo) é de uma
devoção cega, destinada a seguir o filho até o fim;
Teobaldo é o próprio Deus: onipresente, a olhar por um velho retrato a
imensidão do sobrado por sobre o piano nunca tocado.
Cristina (originalmente batizada pelo autor de Nely) segue o caminho
do Cristo (que não é o mesmo que Mariana) tornando-se freira.
Morena (como Mouro, ou seja, Árabe, anti-cristão) deseja uma vida
mundana e acaba por suicidar-se.
São, pois, estes quatro o sustentáculo da cruz montelliana.
...
Mariana, antes católica fervorosa, mantém uma relação edipiana com o
filho pequeno, adota o protestantismo como sobrevida, cultivando o único
objetivo de reencontrar Teobaldo, o que obviamente só conseguirá morrendo.
Mariana é um perene desejo de morte. A vida só lhe convém como os
necessários pequenos degraus da escada que a levará a Teobaldo. Antes disso,
passa por sucessivas outras mortes que são a separação do marido, a perda
das duas filhas (uma para o caixão e outra para o convento. Ambas
devidamente deserdadas). Como que se matando aos poucos, vai-se
fragmentando para suportar cada vez mais só, mais áspera e esperançosa a
sua dor de vida.
Assim se passam mais de 20 anos.
A morte do amado marido ainda motiva a Sinhazinha Dourado a tocar
sua valsa ao piano, cada vez mais funesta.
Morre o Dr. Luna, morre o padre Galvão, morre a Cipriana e a mulher
do reverendo Tobias. Mesmo a cidade experimenta um tipo de morte na
terceira parte do romance “Os degraus do Paraíso” (também com poucas
páginas):
“E só quando o luar voltou, debruçando-se sôbre os sobradões da Praia Grande, é que
se pôde sentir que São Luís, sobretudo ali junto do mar, havia sido restituída a si
mesma, com a penumbra propícia ao canto de amor dos seresteiros.”
27
A cidade moderna, com seus lampiões de gás em desuso, sua vida de
práticas em extinção, só encontrava sua verdadeira natureza na escuridão. O
novo mundo das luzes significa a morte do lugar com o qual convivemos e de
que somos parte.
E é esta cidade renascida, já sem as luzes vermelhas dos vendedores de
peixe frito e com medo dos submarinos alemães e do cometa Harley, que
acaba por encontrar Mariana, ainda no sobrado, ainda viva, ainda por querer
morrer:
27
26. Os degraus, p. 378.
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“Deus lhe poupara a vida, a despeito de suas suplicas constantes para morrer, a fim
de que ela, desfigurada pelo tempo, o rosto cortado de rugas, mãos trêmulas,
testemunhasse a volta de Cristo, depois do escurecimento do sol e da lua e da queda
das estrelas. E esse dia não tardava.”
28
Este messias, que viria “trazido por uma nuvem”
29 chegou numa manhã
em um pequeno barco; vestia um hábito e seu nome era Cristina.
Como Cristo, a já freira filha de Mariana surge para trazer a verdade:
A verdade sobre a morte. A morte de Teobaldo.
A negação do catolicismo por Mariana sustentava-se nas escrituras
bíblicas, que negavam a Igreja Apostólica Romana como detentora da verdade
e a acusava de pecaminosa. Mariana, ao querer entregar seu filho à Igreja
Católica, cai em pecado.
A morte de Teobaldo passa, portanto, a ser parte do plano divino para
corrigir um erro da mãe, do qual o filho seria vítima.
Antes a morte ao inferno.
Cristina, ao ver os pertences da irmã, reconhece esta mesma
providência em sua morte:
“Na realidade, Morena não se matara: Deus a chamara à sua santa glória, antes que a
mãe a distanciasse da verdade de Cristo. Se a irmã não morresse, acabaria cedendo. E
estaria perdida” (Os degraus, P. 388)
Se Teobaldo morre pelo Deus do reverendo Tobias, Morena morre pelo
Deus do padre Galvão.
E é esta verdade que Cristina transmite a Mariana, na derradeira
tentativa de reconversão.
É esta verdade, como o discurso do escritor, a verdade de quem o lê.
Esta verdade acaba num envelope fechado, como tantos outros
abarrotando o quarto mofado de Mariana.
Verdade que Teobaldo em seu retrato olhava Mariana ao fremir as
teclas do piano, na contração final.
Que Cristina pegou o barco que a havia trazido, naquele mesmo dia, de
volta ao caminho de sua verdade.
Os degraus do Paraíso
surge de um desejo de morte.
Converter-se em qualquer coisa é morrer o que se era.
Morrer é como voltar pra casa.
Não há escada nOs degraus do Paraíso, a vertigem helicoidal anunciada
por Montello é nada mais que a morte, único passaporte possível para a
felicidade eterna.
28
27. Os degraus, p. 381.
29
28. Os degraus, p. 381.
Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192
BIBLIOGRAFIA
Acervo da Casa de Cultura Josué Montello (jornais, cartas, anotações);
Anselmo, Artur:
Um romance da Cisão: Os tambores de São Luís, sem
editora, Rio de Janeiro, 1977;
Eco, Umberto:
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Resumo
Análise do quinto romance do escritor maranhense Josué Montello,
Os
degraus do Paraíso
.
Através de análise literária (o próprio livro), bibliográfica (textos de ou
sobre Montello) e documental (acervo da casa de cultura Josué Montello:
jornais, entrevistas e recortes em geral), procurei dar nova luz ao leque
Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192
interpretativo do romance, em sua teia de significados quanto ao escritor, a
cidade e sua inter-relação com o restante da Saga Maranhense.
Palavras-chave:
Josué Montello, Maranhão, São Luís, morte.
Abstract
This article Is an analysis of Josué Montello’s fifth novel,
Os degraus do
Paraíso
. (The Paradise Steps).
Trough literary analysis (the novel itself), bibliographical (books and
articles about Montello) and documents (papers, interviews and general notes
stored at Casa de cultura Josué Montello), I went on trying to add new light to
the novel’s interpretative fold, on it’s possible meanings towards the writer
himself, the city and it’s relation to the rest of the Saga Maranhense.
Resumen
Este artículo es un análisis de la quinta novela de Josué Montello, Os
degraus do Paraíso. (Los pasos del Paraíso).
A través de análisis literario (la novela en sí), Bibliográfica (libros y
artículos acerca de Montello) y documentos (entrevistas y notas generales
O Caminho, a Verdade e a Vida
Projeções sobre Os degraus do Paraíso
Bruno Azevêdo
INTRODUÇÃO: JOSUÉ MONTELLO E A SAGA MARANHENSE
São Luís é uma ilha que se faz questão. Fisicamente ligada ao
continente por um canal não à toa conhecido como Estreito (dos Mosquitos), a
cidade teve ao longo de sua história poucos vizinhos; durante o período de
dominação portuguesa, seus olhos estavam mais voltados ao mar que ao
continente e, mesmo hoje, leva-se quase uma hora para chegarmos à cidade
mais próxima. Talvez por este isolamento tenha desenvolvido particularidades
que há anos vêm fascinando e expulsando os ludovicenses. Um destes
conseguiu conservar os dois aspectos na medida em que nela ficou pouco, mas
dela falou tanto que acabou por erguer uma outra cidade, construção
correntemente conhecida como a “Saga maranhense” de Josué Montello.
O termo foi inicialmente usado pelo crítico Franklin de Oliveira como
referência aos romances montellianos que se passassem no Maranhão, sendo
aceito largamente, mas nunca estudado a fundo, ficando a idéia geral de que
Montello, apesar de situar alguns livros em outros lugares como o Rio de
Janeiro, tinha no Maranhão o maior enfoque de sua obra.
O fato de algumas histórias não se situarem no estado denuncia a
intenção de uma inter-relação entre as que têm o Maranhão como cenário.
Assim, a Saga maranhense pode e deve conter textos que não dizem respeito
a um livro específico e sim a todos eles, sendo cada romance como um tijolo
com o qual o autor edifica a sua versão do lugar. Esta inter-relação pode estar
para além da intencionalidade direta do autor e começa pela tentativa de
definição do que seria a própria Saga.
A escritora Telenia Hill diz que:
“Depois de Janelas fechadas (1941), Montello retorna aos motivos maranhenses, com
Labirinto de espelhos (1952), seguindo-lhes A décima noite (1959), Degraus do Paraíso
(1965), Cais da Sagração (l971) e Os tambores de São Luís (1975). Constrói-se,
portanto, a saga maranhense que se completaria com o romance que acaba de ser
focalizado, se não fosse a retomada com A coroa de areia (1979), O Largo do Desterro
(1981), e Perto da meia-noite (1985).” (HILL, 2007).
É fato que Montello compôs seus romances de maior “relevo” nos anos
1970, mas não deixou de escrever sobre o Maranhão em outras épocas; mesmo
após “Perto da meia-noite” (onde a autora situa o final da saga) há livros